LIBERDADE DE EXPRESSÃO 




A EUROPA, A RECONVERSÃO E A SOLIDARIEDADE

JOEL HASSE FERREIRA

Apresentados publicamente os níveis de cumprimento pela economia portuguesa e pelas finanças públicas dos critérios do Tratado da União Europeia, fica claro que se confirma a perspectiva de participação de Portugal no arranque do EURO.

Essa participação no EURO tendo claras vantagens para a economia, para as empresas e para os cidadãos portugueses, cria ou reforça algumas responsabilidades no próprio domínio empresarial. A moeda única reforçará alguns factores de competitividade inter-empresas o que implica uma menor tolerância face a certas dificuldades ou a situações pantanosas cuja resolução se arrasta.

Neste contexto, a própria viragem introduzida recentemente no Programa de Reconversão de Empresas e a inflexão em toda a política de intervenção podem ajudar a reforçar as condições de funcionamento de muitas empresas.

Entretanto, este processo conjugado de participação no EURO e de apoio à reconversão do tecido empresarial obriga a uma maior coordenação das políticas económicas nacionais nos países da União Europeia e a um avanço no sentido da harmonização fiscal, por razões de equidade e de sã concorrência.

A coordenação das políticas económicas dos diferentes países da União Europeia, imprescindível para uma maior eficácia no que se refere à potenciação do crescimento económico e no domínio da criação do emprego, depara com as dificuldades que advêm, por um lado, dos muitos diferentes níveis de desenvolvimento e da diversidade das estruturas económicas nacionais e por outro, dos diferentes paradigmas e programas que norteiam e animam os vários Governos da União Europeia.

Neste âmbito, a eventual vitória do SPD alemão (partido da Internacional Socialista) nas próximas eleições legislativas acresceria as responsabilidades do Partido Socialista dos Europeus em todo o debate político e na actuação prática dos diversos Governos da Europa. Os socialistas europeus, que já predominam na maior parte dos governos da União, ganhariam novas responsabilidades e reforçariam os sinais de esperança, no conjunto da União Europeia, para todos os que ambicionam uma nova solidariedade, alargada e reforçada à escala do continente europeu e nomeadamente no âmbito da União.

Por outro lado, no domínio fiscal, área fundamental cuja harmonização se pretende à escala europeia, o Governo português tem em marcha ou em preparação um conjunto de medidas e diplomas que transformarão, de forma ponderada e no sentido da maior solidariedade, equidade e eficácia, o sistema tributário português.

Já se encontram na Assembleia da República uma proposta de autorização legislativa concernente à Lei Geral Tributária, relatórios sobre o Imposto Automóvel, o IRC (reporte de prejuízos), os escalões do IRS e preparam-se novas medidas nos mais diferentes domínios da área fiscal, incluindo a reformulação do sistema de tributação patrimonial.

Peças indispensáveis a conjugar são as novas medidas a adoptar na saúde e a reforma da Segurança Social. Sobre esta, já se encontra publicado o Livro Branco, tendo tido também alguma difusão a chamada posição dos minoritários.

As reformas a levar a cabo na Saúde e na Segurança Social, como na Educação, na Justiça e na Administração Pública são componentes imprescindíveis do processo de transformação social, económico, financeiro e político que a participação no EURO e os processos de reestruturação do tecido empresarial e de reforma de fiscalidade implica.

Para todas elas, se exige a nossa atenção e a nossa participação.




ROSA CASACO

ASCENSO SIMÕES (*)

O caso Rosa Casaco esgotou a discussão política nos dias que antecederam o Carnaval. Faltando matéria importante para propor e discutir, o PSD, pela voz do deputado Carlos Encarnação, veio a terreiro acusar o Governo do Partido Socialista.

Não sei porquê, o PSD transformou o Dr. Carlos Encarnação numa espécie de «pau-para-toda-a-colher», quando não há ninguém para tratar da «mercearia» o inefável Zeca Mendonça deverá indicar o sempre disponível telefone do ex-Secretário de Estado da Administração Interna.

Ouvi-o na estação que me consegue acordar, a TSF. E fiquei a saber que este ilustre dirigente do PSD não compreendia como alguém, com o passado deste ex-pide, se passeasse em plena Lisboa sem pedir licença.

Tratava-se de mais uma falha grave do Governo do Partido Socialista e em especial do Ministro da Administração Interna, Jorge Coelho.

É certo que todos gostaríamos de ver Rosa Casaco cumprindo os anos de prisão a que foi condenado. É certo que o nosso país deveria ter desenvolvido, desde o momento da condenação, todos os procedimentos necessários à captura do assassino de Humberto Delgado. Todos deveriam ter colaborado para a captura deste homem que não se arrepende do que fez. Aos comunistas, presentes nos primeiros cinco governos provisórios, aos populares presentes nos governos da Aliança Democrática, aos sociais-democratas presentes nos Governos da Aliança Democrática, do Bloco Central e nos maioritários de Cavaco Silva. Aos socialistas presentes nos restantes governos. Todos, sem excepção, se devem responsabilizar por não terem conseguido capturar o homem que agora elegeram como símbolo.

Por momentos, na Assembleia da República, todos se esqueceram dessas responsabilidades e todos quiseram «vergastar» a actual equipa do Ministério da Administração Interna.

Muitos dos que falam desconhecem que milhares de portugueses emigraram, a salto, durante décadas, para países como a França e como a Alemanha. Outros desconhecerão que alguns dos nossos mais importantes combatentes antifascistas saíram de Portugal, pelas nossas fronteiras, sem que a polícia portuguesa os impedisse. Durante todo o período da Ditadura o País viveu de portas trancadas e mesmo assim quem queria sair de Portugal saía. Todas as fronteiras, por mais fechadas que estejam, permitem entradas e saídas clandestinas.

A livre circulação de pessoas e bens aceite por Portugal a partir do momento em que quisermos fazer parte integrante do grande Espaço Europeu, criou novos problemas que as forças de segurança dos países da União Europeia têm vindo a resolver. E ao contrário do que poderia pensar-se, o alargamento do espaço policial acrescentou, sobremaneira, segurança aos países que o integram.

Ficamos a saber que aqueles que criticam o Governo do Partido Socialista não quiseram ou não souberam socorrer-se dos instrumentos existentes para a captura de Rosa Casaco no momento em que este tentasse entrar em qualquer país do espaço Schengen. Se nos longos anos em que Carlos Encarnação esteve no Governo alguém dos seus muitos solícitos colaboradores tivesse tido o trabalho de colocar, no sistema informático, o nome de António Rosa Casaco, este ex-pide não teria entrado em Portugal sem ter sido rapidamente encaminhado para uma qualquer esquadra de polícia. Mas há que perguntar a estes novos arautos da defesa das nossas fronteiras e da nossa história se o que dizem é verdadeiro e sentido. Para um Partido que quis passar uma borracha sobre a História de Portugal, condecorando e promovendo, por mérito, ex-pides, como o fez o Governo de Cavaco Silva, estas lágrimas de crocodilo, vertidas pelo deputado Carlos Encarnação, não passarão de um mero disfarce oportunista?

Felizmente que temos nos nossos dias um Ministro da Administração Interna que faz, que substituiu a redonda palavra por actos, concretos e imediatos. Depois desta passagem de Jorge Coelho pelo MAI, qualquer tentativa de Rosa Casaco para circular em território da União Europeia será um caminho sem regresso para a cadeia.

(*) Membro da Comissão Política Nacional



CULTURA A CAMINHO DO SÉCULO XXI

FERNANDO BENTO GOMES (*)

É hábito avaliar-se a riqueza cultural de cada um pelo número de óperas, filmes, peças de teatro, exposições, livros e concertos que, ao longo do ano, vai amealhando. Por um cálculo fictício poderíamos até definir uma taxa de consumo cultural em função deste parâmetro.

Para alguns o resultado seria, com certeza, elevado, contribuindo para a ideia de que a prática cultural está associada ao estilo de vida das elites.

Para outros, o resultado rondaria a mediania e para os mais desafortunados em tempo livre, conhecimento, dinheiro e imaginação o resultado seria, simplesmente, catastrófico. Neste grupo se situam os milhões de portugueses que não compram um livro por ano, pouco frequentam as salas de espectáculos e raramente entram num museu.

Traduzido em miúdos teríamos o seguinte esquema, próximo do real.

Pavarotti, ao vivo, em Central Park, Veneza em passeio de gôndola fora de estação e o Louvre num pulinho de capricho só estariam ao alcance das elites.

Para uma larga maioria a sempre atenta sociedade de consumo teria, e tem, um vasto leque de opções.

Discos, revistas, best-sellers, CD-Roms, concertos patrocinados, bons filmes a horas mortas da TV, teatro à escolha, cinema entre dois hamburgers, voltas ao mundo, em classe turística, bom cardápio, sim senhor, para todos os gostos e bolsas.

Para outra maioria a vida cultural estaria reduzida a contínuas doses de telenovelas e pouco mais do que isso. À luz desta forçada segmentação, o estado cultural da nação não seria brilhante.

E sendo certo que os mais privilegiados estão no direito de usufruir a oferta cultural disponível, importa, antes, centrar a atenção nos que se situam nos escalões inferiores.

São estes que determinam pelo seu comportamento, a possibilidade da prática cultural ser encarada como luxo ou como necessidade.

Postas as coisas neste pé, algumas questões relacionadas com o tema dominam o virar de século.

Em que medida a cultura é o vector importante para o progresso do País?

Como trazer para à esfera de uma prática cultural mais intensa as multidões que lhe são indiferentes?

A resposta à primeira questão é obvia se aceitarmos o papel influente da vida cultural nos países de maior peso económico e científico na comunidade internacional.

O que está longe de ser o nosso caso, mesmo reconhecendo a existência de uma oferta diversificada, sem a correspondente procura.

A verdade é que as coisas começam em casa ou na escola.

E, se em casa a indiferença dos adultos é um reflexo do panorama geral e a escola deve desempenhar um papel fundamental no ensino da prática cultural, esse esforço nem sempre é bem sucedido. Por ser incompleto e acabar cedo.

De outro modo, não falaríamos cada vez pior a nossa língua, não teríamos fornadas de licenciados alheios às manifestações artísticas menos mediáticas, diga-se menos televisivas, não teríamos nas paredes dos prédios próximos das escolas autênticos murais de pinturas grafitti. Daqui se tira uma primeira conclusão.

Se ao nível da criança, cultura e instrução deverão andar de mãos dadas, ao nível do adulto, a cultura terá de ser a extensão natural do que a escola deixou incompleto.

De facto, no palco do nosso quotidiano, há outro lado da cortina que é preciso espreitar.

Projectadas as redes de auto-estradas necessárias, inauguradas as modernas catedrais do consumo, garantida a presença do computador nas escolas, prestado o culto da insónia à Internet, banalizada a comunicação por milhares de telefones portáteis, multiplicadas as possibilidades de lazer doméstico por dezenas de canais de televisão, o outro lado da cortina mostra-nos o estado adormecido em que se encontram a cultura científica e artística, dois motores da inovação e criatividade.

Tanto mais quanto uma prática cultural mais vivida criará novos postos de trabalho e levará à abertura de pequenas empresas que, a seu tempo, darão provas de novo engenho e arte.

Veja-se, por exemplo, como o desenvolvimento do turismo dedicado à terceira idade tem permitido a milhares de reformados conhecer o mundo que não conheceram em cinquenta anos de vida activa. Com evidentes vantagens para o sector hoteleiro, no período de baixa estação, para as empresas de camionagem, restaurantes, museus, grupos de animação e lojas de artesanato, do litoral ao interior.

Mas, para além desses, há os milhões de cidadãos que se encontram em plena vida activa, muitos dos quais se limitam a defender, com todas as forças, a continuidade dos postos de trabalho. Para estes, o acesso à prática cultural esbarra, normalmente, no baixo nível de rendimentos e na luta pela melhoria das condições de subsistência, a que dedicam todos os recursos e energias.

É impensável pensar-se que um morador num bairro de barracas possa revelar a menor parcela de interesse pela aventura de um concerto sinfónico ou de uma noite de ópera.

Só que o argumento perde força quanto transportado dos bairros de barracas para outras zonas com melhores condições de vida e educação, onde muita gente, que não está no limiar da subsistência, revela um tipo de comportamento semelhante. Ou seja, nos bairros de ruas asfaltadas e bem iluminadas, onde as casas têm telhado, luz, gás e água canalizada, onde a recolha de lixo se faz a horas certas e táxis nunca se esquivam ao serviço, é grande a indiferença perante a oferta cultural.

Para esta atitude sobram muitas e variadas justificações.

À cabeça vem sempre a falta de tempo e disposição para ler um livro, ir ao cinema ou ao teatro, depois da faina cansativa no emprego e nos transportes, tudo isto agravado, pelo pouco que sobra do salário ao fim do mês, pela dificuldade de escolha, pela falta de alguém que se ocupe das crianças, pelo recurso fácil a qualquer concurso de televisão. Sobretudo, se for um programa interactivo que ofereça meia hora de vedetismo a gente anónima, a arma mais eficaz da guerra das audiências.

Há, pois, um estado de quase divórcio completo entre a vivência cultural de grande parte da população e o seu comportamento de rotina.

Ou seja, é-lhes difícil reconhecer que o conceito de qualidade de vida não se esgota na lufa-lufa do emprego, na correria dos transportes e no conforto caseiro do serão televisivo.

Despertar este mar de gente para a visão de uma prática cultural mais alargada, como forma de enriquecimento pessoal, é um verdadeiro objectivo nacional. E, de forma premente, surge a segunda questão.

Como trazer mais pessoas para o consumo de produtos que não constam do cabaz de compras?

Mergulhando no real, o problema só pode ser ultrapassado pela melhoria das condições de vida das classes mais desfavorecidas, pelo sucesso na batalha contínua da educação por uma inserção social mais completa, sobretudo, pela criação de uma nova mentalidade que é urgente despertar.

E, se por algum lado é preciso começar, comecemos por aqui. Pela necessidade de associar a noção tradicional de cultura, vista como um bem de poucos, a outros valores indispensáveis que formam, no seu conjunto, um bem de todos.

Não se pode viver a cultura da dança, da música, da pintura, da literatura, do teatro, da escultura, do cinema, sem viver, em paralelo, a cultura da defesa do ambiente, do civismo, da protecção à criança, da solidariedade.

Na vida real estas coisas estão sempre relacionadas umas com as outras.

Por outras palavras, é preciso juntar à melhoria da qualidade de vida proposta pela sociedade de consumo, a prática do civismo, a noção de solidariedade, o conceito de progresso não exclusivamente ligado ao consumo desenfreado, a discussão de novos temas, enfim, o desejo de sobrevivência da sociedade.

Se não vejamos.

Nos nossos dias, por tudo e por nada se fala em droga, poluição, mortes na estrada, insegurança urbana, ritmo frenético, como se esse fosse o preço a pagar por uma sociedade que procura o prazer enquanto disfarça a inquietação.

E pior do que isso, falamos dos males que assolam o nosso planeta como se de outro planeta se tratasse.

Um conjunto de problemas que parece não caber na noção tradicional de cultura, por muito que esta se esforce em abordá-los em livros, peças de teatro, filmes e programas de televisão.

E de tanto se ouvir falar nisto, leva-nos a crer que está tudo debatido.

De tal modo que já ninguém tem dificuldades em admitir que a solução para o problema da droga não passa apenas pela distribuição massiva de seringas.

Tal como a saúde dos solos e dos rios não tem a ver apenas com a construção de centrais de tratamento de lixo e de esgotos.

Como a diminuição das mortes na estrada não passa só pelo reforço das brigadas de trânsito e pela aplicação de multas aos prevaricadores. Neste caso concreto, observe-se que a desculpa baseada nas estradas do tempo da outra senhora e no parque automóvel envelhecido já deixou de ser explicação para a avalancha anual de acidentes rodoviários.

E o mesmo se dirá do ritmo frenético que nos põe a correr, sem meta à vista e da selva urbana que não se intimida com a presença obrigatória de um polícia em cada esquina.

Certo, é que sendo úteis muitas das medidas postas em prática para a resolução destes problemas, elas são apenas uma parte da solução.

A outra, caros amigos, toca-nos a todos.

Goste-se, ou não, estamos todos no mesmo palco, somos todos vedetas ou figurantes da comédia ou drama do nosso dia a dia.

Não serve de desculpa reconhecer que os pacotes de droga não são carimbados pela alfândega, que a janela na camada de ozono não fica mais escancarada com uma bomba de desodorizante, que a potência dos carros convida a furar os limites da velocidade, que o assalto de rua até pode ser feito nas barbas da polícia.

A cultura de uma época caracteriza-se pela abordagem que faz dos seus problemas.

Importa, pois, ter presente que a resolução destes problemas passa pelo grau de consciência e de conhecimento que deles vamos tendo, pelo sentido de responsabilidade cívica, por uma prática de solidariedade que veja no outro o vizinho do lado, no fundo, por uma visão mais ampla de um conceito de cultura, próprio do século XXI.

Aceite esta cultura de cidadania, mais facilmente aceitaremos a necessidade de uma prática cultural, aberta a todos e não só a alguns. Tal como se fala, correntemente, de cultura democrática, teremos de passar a falar de cultura ambiental, cultura cívica, cultura de respeito pelo vizinho de baixo, cultura de tempos livres, cultura de liberdade de gente responsável.

Ser solidário, tornar coerente a cidadania, fazer da educação um circuito de vasos comunicantes entre a escola a vida, entrar pelos caminhos da modernidade de forma livre e responsável é meter a cultura no caminho que leva a um mundo melhor. Sem a vivência destes valores, tão difícil será encontrar um lugar num mundo altamente competitivo, como difícil será encarar a ida ao cinema, a leitura de um livro, as horas dedicadas a um concerto musical.

Optemos, pois, pela definição de uma política cultural de vistas mais largas, mais ambiciosa, mais dotada de meios que a libertem do papel de parente pobre no Orçamento de Estado. E como o dinheiro não chega para tudo o que falta, há que procurar novas soluções, encontrar parceiros que tenham a consciência de estar na mesma barca, promover o Mecenato, associar a escola a programas diferentes do saber para passar, apelar ao bom senso que há nos mass media, alargar as campanhas de sensibilização a outras áreas da vida, mentalizar as pessoas para os novos desafios, unir os esforços em tarefas comuns.

Caminho difícil, dirá, quem sempre achou ser mais fácil destruir do que construir. Mas só esta mudança de mentalidade poderá ajudar a deitar abaixo o muro cómodo das lamentações, cortar a indiferença que criou raízes, sacudir as mágoas de um capote já bastante molhado. De outra maneira, convençam-se todos os cínicos de serviço, dentro de anos Pavarotti não terá Central Park para cantar, Veneza só será visível na maré vazia e o Louvre acabará a vender máscaras antipoluição.

«Nas tintas» dirá o cínico com o sorriso azedo de quem traz o mundo dentro da barriga, «cão de guarda já eu não tenho, pistola hei-de comprar, quanto ao resto, salve-se quem puder».

E ao coçar o umbigo tem a sensação de estar a coçar o centro do mundo.

Sozinho, pois claro, numa ilha deserta.

(*) Coordenador da Secção de Cultura da FAUL




OS INTÉRPRETES DE LÍNGUA GESTUAL PORTUGUESA

FERNANDO ANTÃO RAMOS (*)

1. Prescreve a Constituição da República Portuguesa incumbir ao Estado, no âmbito da realização da política educativa, entre o mais, «promover e apoiar o acesso ao ensino, dos cidadãos portadores de deficiência" e "valorizar a língua gestual portuguesa enquanto expressão cultural e instrumento de acesso à educação e da igualdade de oportunidades».

Por seu turno, na Classificação Nacional das Profissões, a actividade de Intérprete de Língua Gestual vem assim definida: «O Intérprete de Língua Gestual efectua a interpretação de intervenções verbais para língua gestual e desta para a verbal, servindo de mediador na comunicação entre os deficientes auditivos e os ouvintes, assegurando a interpretação consecutiva e simultânea de intervenções verbais e gestuais, respeitando a interdependência de julgamento e as decisões do deficiente auditivo, a fim de o apoiar em diversas situações, tais como consultas médicas, seminários, negócios, aulas, audiências em tribunais, reuniões, conferências, etc

Trata-se de matéria que se insere nos domínios da mediação na comunicação, revestindo-se porém de peculiaridades muito sensíveis que reclamam a maior atenção e o maior cuidado no seu tratamento.

2. A surdez é um fenómeno complexo, constituindo a sua consequência mais evidente não tanto a incapacidade para ouvir, mas a relativa inacessibilidade à linguagem falada.

Em ordem à sua superação, torna-se necessário incrementar a divulgação da língua gestual, assegurar a formação de profissionais aptos no domínio dessas línguas, credenciar o exercício das respectivas funções e regular o exercício da profissão de intérprete de línguas gestuais.

O gesto acompanha qualquer forma de comunicação oral, desde o princípio da sua aprendizagem e ao longo da sua prática, e constitui, para as pessoas surdas, o modo natural de comunicar.

É através do gesto que a criança surda começa a comunicar com os pais, assim tornados já intérpretes empíricos de uma linguagem gestual insipiente, por rudimentar.

Mas possível que se tornou a criação, desenvolvimento e aprofundamento do estudo de línguas gestuais, com os seus léxicos, gramáticas e versatilidades próprias, impõe-se o reconhecimento e a dignificação da Língua Gestual Portuguesa como principal forma de comunicação ao alcance das pessoas surdas.

As línguas gestuais são constituídas por combinações de sinais organizados em sequências regidas por regras gramaticais específicas e distintas das usadas nas línguas faladas.

São por isso línguas gestuais-visuais em que a aprendizagem da comunicação se encontra conformada por uma específica didáctica da leitura deste grafismo peculiar, expressivo e simpático.

E naturalmente que o domínio da Língua Gestual Portuguesa e da sua correcta utilização reclama profissionais qualificados para assegurar a comunicação entre surdos e ouvintes. Esses profissionais são os intérpretes de línguas gestuais.

Como bem se entende, os intérpretes de línguas gestuais prestam inestimáveis serviços à população surda, permitindo-lhe ter acesso a uma variedade de informação na sua língua gestual materna e funcionar como elo de comunicação entre população surda e os ouvintes.

Na esteira do que é frequentemente afirmado, penso que o reconhecimento das línguas gestuais, e também a sua divulgação, prestará um contributo inestimável para que as pessoas surdas possam desfrutar, por fim, de um estatuto sociológico diferente do que usualmente se lhes encontra associado.

Efectivamente, uma vez assegurada a comunicação pela via gestual, forma última e suprema da expressão das pessoas surdas, estas, mais do que incluídas no grupo dos portadores de deficiência, como tendem ainda a ser vistas, passariam a ser tomadas antes como integrantes de grupos minoritários com a sua própria língua e cultura.

E semelhante consideração, que nada possui de despicienda, constitui mais um forte argumento a favor do reconhecimento e divulgação das línguas gestuais.

4. No estrangeiro e no tocante a este domínio, o panorama revela-se muito heterogéneo.

Assim, se nos Estados Unidos da América, dos polícias aos carteiros e taxistas, se encontra generalizada a prática da linguagem gestual e na Suécia, ela é leccionada como terceira língua ao lado do Sueco e do Inglês, já na Bélgica tal língua não se encontra ainda reconhecida.

Em Espanha, por seu turno, data de 22 de Dezembro de 1995 a publicação do Real Decreto nº 2060 que estabelece a categoria de Técnico Superior de Interpretação da Língua Gestual e define as bases mínimas a que deve corresponder a respectiva formação. Face ao que pudemos apurar porém, pelo menos até ao início do Verão passado, ainda não havia sido posta em prática.

Do mesmo modo em França, a língua gestual só foi reconhecida oficialmente com a «Loi nº 91-73, de 18 de Janeiro de 1991», que trouxe grandes ganhos ao ensino da língua gestual e à sua divulgação, lei essa regulamentada pelo «Decret d'Aplication nº 92.1132, de 8 de Outubro de 1992».

Ora em Portugal não se encontra ainda regulamentada a actividade de Intérprete de Língua Gestual, isto a despeito de existir constituído já um grupo de estudos interministerial sobre certificações de formadores e intérpretes de língua gestual e de funcionar, no âmbito do Secretariado Nacional para a Reabilitação e Integração de Pessoas com Deficiência, um Comissão para o Reconhecimento e Protecção da Língua Gestual Portuguesa, tendo sido já publicado um Gestuário de Língua Portuguesa.

Por outro lado, a actividade do intérprete de língua gestual deve ser sujeita a regras deontológicas objectivas, preocupação esta que está bem patente no plano curricular do bacharelato em Tradução e Interpretação de Língua Gestual Portuguesa cursado na Instituto Politécnico de Setúbal a partir do presente ano lectivo.

É que, com efeito, insere-se medularmente na actividade profissional do intérprete a preocupação, tornada dever, de comunicar de forma objectiva e contextualizada ou seja, com integral respeito pelos conteúdos percebidos e transmitidos.

Daí que se reclame do intérprete de linguagem gestual uma formação adequada, envolvendo um treino persistente e um exigente regime de prova que garanta com razoável credibilidade uma capacitação, técnica sem dúvida, mas igualmente deontológica, em tão sensível domínio da arte de comunicar.

5. Estas considerações apontam para a urgência em se proceder à disciplina da actividade dos intérpretes.

Com esse objectivo, deu entrada na Assembleia da República uma iniciativa do Grupo Parlamentar do Partido Comunista que subiu a Plenário no passado dia 11 de Fevereiro, com ele se intentando acelerar a passada para a regulamentação dessa actividade, de forma a conferir-lhe, referem os seus autores, «... a segurança e a dignidade necessárias para o correcto exercício da profissão».

Ora, o referido projecto de lei, na medida em que enuncia os princípios gerais por que se deve reger a formação dos intérpretes de linguagem gestual e a disciplina da sua actividade, tende a constituir uma resposta satisfatória para tais preocupações.

Em alguns pontos, porém, o diploma aponta para soluções que deverão ser cruzadas com as já avançadas noutras instâncias, impondo-se agora que, em sede de especialidade, dialogando com as associações de surdos e de intérpretes e, naturalmente, em consonância com os estudos em curso quer nos organismos governamentais, quer noutros, se proceda às afinações que se revelem necessárias, de forma a que a medida legislativa possa corresponder às expectativas com que é aguardada.

6. Constitui facto indesmentível andar a linguagem gestual portuguesa ainda arredada do comum das nossas escolas e da nossa população.

Conhecem-se é certo alguns casos esporádicos em algumas escolas onde, simultaneamente com a aprendizagem das primeiras letras, se promove a aprendizagem da língua gestual portuguesa.

E como consequência disto, não raro sucede na prática notarial, como nos tribunais, que o intérprete depara com interessados incapazes, por desconhecimento da língua, de estabelecer uma comunicação mesmo gestual.

Nessas situações, relativamente frequentes por exemplo nos tribunais e nos cartórios notariais, o papel do intérprete limita-se a tentar uma comunicação por mímica com todo o risco de infidelidade dos conteúdos apreendidos pelos interessados.

Mas é preciso que, a par das atenções voltadas para a actividade dos intérpretes de língua gestual, se proceda rapidamente ao reconhecimento da Língua Gestual Portuguesa, se promova a sua difusão pela população e se credencie avultado número intérpretes e monitores de formação.

Isto aponta para a urgência em divulgar entre nós o uso da língua gestual portuguesa, estimulando a sua aprendizagem e aplicação.

Por nossa parte, por exemplo, bem gostaríamos que a nossa Televisão, designadamente a Televisão Pública, em simultâneo com os conteúdos difundidos, tratasse a informação em língua gestual.

Isto porém, de forma sistemática e não apenas episodicamente, como se tem visto suceder.

Além da manifesta utilidade para a comunidade de surdos que, como os outros cidadãos, bem prezariam desfrutar do acesso a tão importante meio de difusão de informação, seria igualmente prestado um valioso serviço à própria divulgação da Língua Gestual Portuguesa.

Quanto a mim, resta-me tributar à comunidade dos surdos portugueses a minha total solidariedade e afiançar-lhe a minha inteira disponibilidade para engrossar a ala dos que lutam pelo reconhecimento e divulgação da sua Língua.

(*) Deputado do Partido Socialista



PROPOSTA À COMISSÃO NACIONAL

ANTÓNIO BROTAS

Os Estatutos são de uma imensa importância para o futuro do PS.

O processo de revisão deve ser um processo de conciliação dos socialistas.

A proposta de revisão publicada na "Acção Socialista" em 19 de Fevereiro tem indubitáveis qualidades, mas é susceptível, ainda, de possíveis alterações e correcções.

Ela é, de facto, o produto de um trabalho que se arrasta há bastante tempo, mas que nem sempre terá decorrido do melhor modo.

Por exemplo, militantes que apresentaram propostas de alteração em conformidade com o regulamento aprovado pela Comissão Nacional, não tiveram oportunidade de ver os seus representantes integrar a comissão encarregue de preparar a proposta final como esta estipulado no referido regulamento. Na realidade, tiveram muito poucas ou nenhumas oportunidades de debater as suas ideias com esta comissão.

A proposta agora publicada, só difere em pontos muito diminutos de uma primeira versão divulgada em Abril de 1997, que foi objecto de vários comentários e críticas na sessão promovida pela Comissão Política Concelhia de Lisboa, em 27 de Maio.

Nesta reunião alguns dos presente queixaram-se das suas propostas de alteração, apresentadas em boa e devida forma terem sido ignoradas. Fausto Correia disse, que a discussão ia ainda continuar e que eles seriam ouvidos. De facto, tal não sucedeu.

As deficiências neste processo de revisão dos Estatutos foram, sem dúvida, em parte dividas ao facto de vários quadros do PS, a começar pelo próprio Fausto Correia, terem sido chamados a importantes responsabilidades governativas, que não lhes permitiram dedicar à revisão dos Estatutos o tempo e a atenção necessários.

Foi também possivelmente diminuta a atenção que lhe deram os Presidentes das Federações, pois tendo aprovado a proposta de Abril de 97, não sabemos com que atenção, aparentemente não mais se debruçaram sobre ela apesar das inúmeras críticas que lhe foram feitas.

Chegamos, assim, ao momento actual de estar prevista a aprovação da proposta divulgada pela "Acção Socialista" na próxima reunião da Comissão Nacional, no dia 19 de Março.

Uma coisa é certa.

Se a Comissão Nacional desejar aprovar, em definitivo, no dia 19 de Março, a proposta divulgada pela "Acção Socialista", só o pode fazer legitimamente aprovando-a na íntegra e sem qualquer alteração.

Não é , com efeito, legítimo por no mesmo plano propostas da última hora, desconhecidas da generalidade dos militantes que não tiveram oportunidade de sobre elas se pronunciar, com uma proposta elaborada por uma comissão e divulgada correctamente a todos os militantes com um mês de antecedência (embora, a meu ver, preparada de um modo deficiente).

Quando, no final de um processo, são apresentadas propostas mais ou menos pontuais de alteração, temos tendência a ver só as suas vantagens e, muitas vezes, não temos tempo de ponderar a sua articulação com outros artigos já aprovados. Se numa assembleia são apresentadas muitas propostas deste tipo, é em absoluto impossível fazer uma escolha consistente.

Assim, no próximo dia 19 de Março, a Comissão Nacional só pode aprovar sem alterações a proposta da comissão se o desejar fazer na íntegra e de uma só vez.

Que fazer então, sendo certo que esta proposta foi mal elaborada e tem, sem dúvida, além de inúmeras deficiências pontuais, aspectos que suscitam divergências de fundo, para os quais convém, ainda, tentar encontrar um consenso?

O que sugiro à Comissão Nacional é simples.

É que aprove os Estatutos em dois tempos.

Num primeiro, em 19 de Março, serão aprovados todos os aspectos consensuais da proposta elaborada pela comissão, a começar pelo princípio do retorno aos congressos nacional e federativos.

Serão ainda, neste dia 19, aprovados todos os artigos considerados consensuais da proposta divulgada pela AS, isto é, todos aqueles sobre os quais não haja discordâncias estruturais e cuja suspensão não seja pedida, por exemplo, por 10 membros da Comissão Nacional.

Com isto, em 19 de Março, fica aprovada a grande maioria dos artigos dos Estatutos.

Haverá, depois, que prever um período, que poderá ser de 60 dias, em que os militantes poderão apresentar propostas de alteração estritamente sobre os aspectos ainda não aprovados dos Estatutos, que terão de ser subscritas por um número razoável de militantes (não excessivo porque o tempo é curto) ou por 10 elementos da Comissão Nacional (e não um só, como no regulamento anterior, o que deu origem a uma inflação de propostas).

Uma comissão entretanto nomeada pela Comissão Nacional preparará, em colaboração com os proponentes das propostas de alteração , uma proposta global para completar a revisão dos Estatutos a ser aprovada pela Comissão Nacional numa reunião em Julho.

No caso de ser constatada a existência de divergências não conciliáveis nalguns pontos, esta proposta global poderá ter, excepcionalmente, propostas em alternativa localizadas para serem votadas pela Comissão Nacional.

Penso que este caminho poderá ser o do entendimento entre os socialistas.

Pela minha parte, para além de insistir na apresentação de uma proposta global que, penso, poderá ser de consenso, desejo enviar a Fausto Correia algumas propostas de alteração pontuais, mas desejo saber se ele esta impedido de as ter em conta mesmo no caso de com elas concordar.