POLÍTICA




Cunhal confessa-se derrotado pelo país
SOARES UM VENCEDOR SEMPRE INCONFORMADO

Vinte e dois anos depois, Mário Soares e Álvaro Cunhal voltaram a protagonizar um interessante frente-a-frente, onde cada um teve a oportunidade de manifestar as suas preocupações face a fenómenos como a globalização e o crescimento das desigualdades a nível mundial. Em 1975, porém, quando os dois líderes debateram pela primeira vez, perante os portugueses, a realidade nacional política era completamente distinta: jogava-se de forma dramática o destino do nosso país, dividido entre a ameaça de um projecto revolucionário de características totalitárias, e um segundo bloco, este liderado pelo PS, que reclamava a instauração de uma democracia pluralista e de uma sociedade civil baseada na liberdade e nas regras de um Estado de Direito. Hoje, Cunhal reconhece ter sido derrotado pelos acontecimentos das últimas duas décadas. Mário Soares, o vencedor da luta pela liberdade e um dos principais responsáveis pelo actual modelo de sociedade em Portugal, acredita na União Europeia, no futuro deste país dentro da comunidade dos Quinze, mas continua insatisfeito e inconformado com flagrantes injustiças que subsistem em todo o mundo. Quer mais dos dirigentes políticos mundiais em domínios como a preservação do ambiente e não hesita em criticar a lógica de super-potência do «gigante» norte-americano.

Em 1997, o fundador do Partido Socialista e ex-Presidente da República, Mário Soares, não tem qualquer dúvida em concluir que continuam a existir poderosas diferenças ideológicas e programáticas entre as correntes neoliberais e as correntes socialistas. Na parte final do debate com Álvaro Cunhal, no Instituto de Defesa Nacional, o antigo secretário-geral do PS foi claro em estabelecer aquilo que separa as correntes da direita e da esquerda democrática. Entre os socialistas, «há um estilo diferente de fazer política, há uma atitude dialogante, há um interesse real e não simulado pela solidariedade social, há uma aflição, uma precupação em relação aos pobres e à existência dos desfavorecidos na nossa sociedade», apontou.

De todos os políticos de esquerda que citaria na sua intervenção, Mário Soares seria no entanto particularmente duro quando se referiu a Bill Clinton. «Inicialmente tinha um comportamento que parecia muito correcto, mas neste segundo mandato tem-se revelado um puro oportunista, que segue, pura e simplesmente, aquilo que lhe parece que pode vir a dar mais votos e mais apoios.»

Em outra fase do debate, após Álvaro Cunhal ter defendido uma perspectiva de combate do país dentro da União Europeia, Mário Soares aproveitou para recordar a experiência do PCP nesta matéria em concreto, sempre dizendo mal da Europa, mas nunca desistindo dos lugares em que está.




A EUROPA DE SOARES

Ao contrário desta lógica de actuação dos comunistas, Mário Soares disse então encarar com agrado partidos que superem a escala da nação, atingindo uma dimensão europeia. É que, na perspectiva internacionalista do ex-chefe de Estado, «é importante a existência de uma mentalidade europeia. Nós somos portugueses, ninguém nos tira a nossa nacionalidade. É nossa. Nasceu connosco, mantemos isso para todo o mundo, sempre», declarou, procurando desdramatizar a questão da preservação da nacionalidade face à nossa participação no processo de construção europeia. Mas Soares comentaria, logo depois, que, simultaneamente, nós, portugueses, «também somos europeus». Como tal, «deveremos ter partidos socialistas europeus, comunistas europeus e conservadores europeus», lutando «por uma Europa que não seja fortaleza contra as pressões que chegam de toda a parte, por uma Europa generosa, humanista, aberta e que defenda naturalmente os mais pobres, as conquistas dos trabalhadores e onde possamos lutar contra as desigualdades sociais».

Numa das afirmações mais surpreendentes, Mário Soares, dirigindo-se a Álvaro Cunhal, revelou sentir a necessidade «de um novo Marx». Um novo Marx que estude o capitalismo actual. Além de defender a manutenção do modelo de Estado-providência europeu, Soares referiu-se à globalidade que caracteriza a actualidade dos problemas do mundo. «Os problemas do mundo são globais e a ecologia é um problema global. Não se pode tratar da pureza dos rios, ou combater a poluição dos rios», a uma escala meramente nacional. O mesmo aplicaria, de resto, à temática dos oceanos e da atmosfera. Em conclusão, «tudo está a ser internacionalizado pelos conhecimentos, pelas economias, também pela informação». Por isso, para uma pessoa de esquerda, que acredita num mundo melhor, que deseja maior igualdade, a receita não passa por uma atitude de prisão em relação «a velhos clichés».



RECUSAR O PENSAMENTO ÚNICO

Apesar de reconhecer substanciais mudanças ao nível do capitalismo internacional, cada vez mais financeiro e especulativo, Mário Soares fez também questão de sublinhar a sua recusa face a lógicas filosóficas de pensamento único. Num recado destinado a Cunhal, porém, diria que «lutaremos contra o pensamento único. Mas lutaremos com inteligência e sem persistirmos em bater com a cabeça na parede como se não houvesse parede».

Ainda numa outra referência ao actual posicionamento do dirigente histórico dos comunistas portugueses, o fundador do PS, após realçar a consideração que por ele tem como grande resistente contra a ditadura, comentou que, infelizmente, quando se pronuncia hoje sobre o destino de Portugal, Álvaro Cunhal acaba por assumir uma perspectiva de «orgulhosamente sós», tal como Salazar.

«Isso é tanto mais desagradável quanto os tempos mudaram. E há um fenómeno que se chama globalização», lembrou Soares. Um fenómeno que, «quer se queira, quer não se queira, quer se goste, quer não se goste, é qualquer coisa que nos obriga a ter em conta aquilo que se passou nos últimos anos». Álvaro Cunhal -- acrescentou ainda Mário Soares -- apresenta a mesma concepção sobre a União Europeia «que existia no tempo em que havia União Soviética, e quando o mundo e a Europa estavam divididos em duas partes. Ora, isso acabou», observou, antes de comentar não ter qualquer sentido dizer-se que «de um lado estão os países comunistas -- que querem realizar na terra a utopia e a igualdade -- e do outro lado estão os países imperialistas e a União Europeia -- agente ou subproduto do imperialismo americano».

Para o ex-chefe de Estado, pelo contrário, a União Europeia é uma comunidade «de nações democráticas, pluralistas e respeitadoras dos Direitos Humanos». Quanto às consequências da adesão de Portugal à Comunidade Europeia, impulsionada e concretizada por um Governo em que era primeiro-ministro, Mário Soares defende a tese de que «não obstante as manchas de pobreza que existem, não obstante o desemprego (sobretudo nos jovens), não obstante tantas outras coisas que nos desagradam, a verdade é que houve uma melhoria sensível da nossa população e houve a capacidade de abrirmos horizontes, sobretudo para a nossa juventude e para aqueles que são capazes de ter uma realização pessoal».

Por outro lado, o antigo secretário-geral do PS colocaria em questão as alternativas à União Europeia para o país, assim como as consequências de um eventual falhanço da Europa dos Quinze.

«Se estivermos dentro da União Europeia, como felizmente e activamente estamos, podemos contribuir para a evolução no bom sentido» deste bloco de países. Um bloco que se deverá assumir «como um interlocutor dos Estados Unidos», sobretudo, «para não sermos submetidos à paz americana. Se não estivermos dentro e se a União Europeia não se chegar a fazer, a pax americana vai ser um facto -- não tenho acerca disso a menor dúvida», declarou, em tom de alerta.

Na sua intervenção inicial, abrindo o debate, Mário Soares, curiosamente, logo aproveitou para se interrogar se o país poderia voltar a ser «uma autarcia, orgulhosamente sós, fechados sobre nós próprios», rematando, depois, que, a acontecer, tal representaria «um puro suicídio». Finalmente, uma importante nota ficaria registada por Soares, desta vez para desmontar um «slogan» -- transmitido com alguma frequência por uma minoria de portugueses -- e para desmentir a existência de uma alegada incompatibilidade entre a nossa dedicação a África e a presença nacional na União Europeia. Na opinião de Mário Soares, tratam-se de duas realidades «complementares. Os factos comprovaram isto».



INTERVENÇÃO DE MÁRIO SOARES EM COLÓQUI NO IDN

Intervenção de Mário Soares no colóquio «Portugal na transição do milénio» realizado no dia 6, no Instituto de Defesa Nacional, em Lisboa.

Eu queria começar por felicitar os organizadores deste colóquio internacional - que tem despertado tanto interesse do público, dos media: o comissariado de Portugal para a Expo'98, na pessoa da sua dinâmica directora, doutora Simonetta Luz Afonso, o Instituto de História Contemporânea, a Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Livre de Lisboa, o professor Fernando Rosas, e também, naturalmente, o Instituto de Defesa Nacional, entidade anfitriã deste colóquio, na pessoa do seu director, professor doutor Severiano Teixeira. Quero ainda cumprimentar o senhor doutor Álvaro Cunhal, que é o meu directo interlocutor, hoje, cuja personalidade todos conhecem e que, portanto, dispensa, da minha parte, qualquer referência. E, ainda, o ilustre moderador deste debate, o professor doutor Gomes Canotilho, eminente constitucionalista e homem de grande cultura. Eu também gostaria que se tratasse aqui de um debate, não de dois monólogos justapostos. O título genérico deste colóquio é "Portugal na Transição do Milénio" e parece-me ser uma frase actual, pertinente e que representa pressuposto essencial para a discussão do tema específico de hoje, isto é, "A União Europeia e Crise da Independência"

Ora, esta formulação parece-me, em primeiro lugar, abusiva e, mesmo, tendenciosa Não vejo que haja, hoje, qualquer crise de independência em Portugal. Bem pelo contrário. E, por outro lado, não há qualquer relação, a meu ver, entre a União Europeia e uma suposta crise de independência de Portugal. A formulação é parcial, representa, a meu ver, um evidente parti pris, e está impregnada de subjectividade. Identidade nacional e soberania são conceitos que é útil elucidar no contexto da política portuguesa actual e da orientação estratégica que Portugal vem seguindo desde há duas décadas.

Mas porquê a expressão latina Finis Patriae? Expressão que é o título de um livro de Guerra Junqueiro, que surgiu na sequência da crise do Ultimato inglês e aí sim a questão poderia ter algum sentido. De qualquer maneira, serviu para corroer a monarquia. Mas, hoje? No contexto da actual política portuguesa, de estabilidade política, de expansão económica e de expansão cultural do nosso país, falar de Finis Patriae, mesmo com interrogação? Relativamente à integração europeia é começar, a meu ver, por sugerir um juízo de valor ultracontroverso, conservador, no pior sentido do termo, quanto a mim claro, perfeitamente injustificado e que só uma grande dose de facciosismo ideológico poderá, a meu ver, justificar.

Comecemos, portanto, pela opção europeia de Portugal, feita, como todos sabem, na sequência da revolução democrática de Abril de 1974 e depois ratificada em 25 de Novembro de 1975 e, antes disso, nas eleições para as Constituintes de Abril de 1975 e nas grandes manifestações populares do chamado Verão Quente do mesmo ano.


Opção pelo Primeiro Mundo

A opção foi tomada formalmente, como se sabe, pelo primeiro Governo constitucional, foi depois aprovada na Assembleia da República pelos representantes de três dos quatro principais partidos então presentes na Assembleia da República. E surgiu aos olhos do povo português como o contraponto natural e necessário, direi mesmo imprescindível, da descolonização e da consequente perda de independência, de perda do Império, perdão. Portugal não era, então, muito menos o é hoje, um país do Terceiro Mundo. Optou pelo Primeiro Mundo. Quanto a mim, muito bem, valorizando, ao mesmo tempo, por forma incontestável, o seu relacionamento com os países africanos lusófonos e com o mundo em geral.

A opção europeia, como sempre aliás pensei, não era contraditória com a preservação dos interesses permanentes de Portugal em África e junto dos povos que falam a nossa língua. Era complementar. Os factos vieram comprová-lo. Aliás não havia no contexto de então alternativa à opção europeia. É importante sublinhar este aspecto. Pergunto: podíamos voltar a ser uma autarcia, orgulhosamente sós, fechados sobre nós próprios? Seria isso um puro suicídio. Poderíamos enveredar por uma política terceiro-mundista, seguindo, nomeadamente, os exemplos da ex-Jugoslávia, da Argélia ou do Peru, do coronel Alvarado, como alguns pretendiam? Seria uma pura loucura. Integrarmo-nos no bloco dos países chamados do Leste, para sermos uma espécie, como também se disse, de Cuba europeia? Foi uma hipótese recusada pela esmagadora maioria do povo português nas urnas e nas ruas.

Fizemos, assim, a opção que se impunha. No momento próprio e beneficiámos, incontestavelmente, imenso com isto. Em termos económicos, em termos de desenvolvimento, relativamente à modernização, por exemplo, das nossas infra-estruturas básicas - aeroportos, telecomunicações, etc -, em termos de formação profissional e em termos culturais, e quanto à projecção política de Portugal no mundo. Entretanto, depois desta opção, o mundo mudou radicalmente e continua em acelerada mutação. Nos conceitos, nas concepções, nos modos de pensar, nos objectivos de ser e de estar, nos comportamentos e, sobretudo, nos dados da geopolítica mundial. Não podemos fazer abstracção destas mudanças essenciais, fechar os olhos, desconhecê-las, meter a cabeça na areia como as avestruzes, ignorá-las. Porque o tempo é escasso, enunciarei alguns tópicos dessas mudanças. Primeiro: a Comunidade Europeia, a que Portugal aderiu em 12 de Junho de 1985, transformou-se em União Europeia, a caminho de realizar a moeda única, que, esperemos, dará um impulso, falaremos disso a seguir, à união política, à reestruturação política e institucional da União, tornando a Europa dos cidadãos, a Europa social, permitindo, do mesmo passo, sucessivos alargamentos, reclamados insistentemente pelos países do Leste e do Sul da Europa, e que ainda não estão na União Europeia.

Segundo: a implosão do mundo comunista, com o derrube do Muro de Berlim, o desaparecimento da "Cortina de Ferro", a desautorização moral da ideologia comunista, tal como foi aplicada em todas as experiências realizadas, sem excepção, o desejo de integração dos países de Leste na União Europeia, na NATO e no Conselho da Europa, a reunificação da Alemanha e a desintegração da URSS, reduzida à Confederação Russa, e sujeita a grandes e gravíssimas contradições. Se o comunismo soviético aluiu, política e economicamente, o comunismo chinês está a ser corroído pelo pior tipo de capitalismo selvagem. Não sei, francamente, o que será pior. De qualquer modo, remete-vos para as recentes declarações, na América, feitas pelo Presidente Jiang Zemin na sua viagem aos Estados Unidos onde ele fala do elogio da economia de mercado e do estado de direito.

Terceiro: o neo-hegemonismo americano após a Guerra do Golfo. Única potência à escala planetária, com um potencial económico imenso, hegemonia exclusiva através do controlo das redes económicos, dos grupos financeiros, das inovações tecnológicas e das trocas comerciais, para não falar da instrumentalização, feita pelos EUA, da própria ONU, como no caso da eleição do anterior secretário-geral. Mas o império americano tem grandes fragilidades, sociais e étnicas e, por isso, não deve aspirar a ser o gendarme do mundo. Mesmo que aspire, não o conseguirá ser.



EUA estão a engendrar um monstro

Por outro lado, está a engendrar um monstro: o capitalismo financeiro dos nossos dias, especulativo, com espantosa mobilidade, que não reconhece fronteiras nem Estados, não tem regras, como a recente crise das bolsas e as especulações contra as moedas nacionais demonstram. Monstro constituído pelas grandes companhias multinacionais, sem vinculações aos Estados, de que poderá vir a ser uma das vítimas. Há avisos nesse sentido, emitidos, por exemplo, na última reunião do consistório neoliberal de Davos.

Quarto: o fenómeno da globalização, das economias, dos conhecimentos e da informação instantânea, conjugado com aquilo que Ignacio Ramonet, em "Geopolítica do Caos", chama segunda revolução capitalista, que não tem direcção nem centro, visando, tão-só, o lucro pelo lucro, apesar de, até agora, ter beneficiado principalmente a economia americana. Mas a desregulamentação em larga escala das instituições herdadas de Bretton Woods, provocada pela mundialização dos mercados monetários e financeiros, permite que os capitais se desloquem à velocidade da luz, 24 horas sobre 24, estimulando uma nunca vista especulação financeira, que desarticula os Estados nacionais, como, por exemplo, o caso do México, recentemente, com alguns dos chamados "tigres asiáticos". O volume das transacções financeiras sobre os mercados monetários e financeiros representa cerca de 50 vezes o valor das trocas comerciais internacionais. A economia financeira é mais importante do que a economia real. O movimento das moedas, o ataque especulativo a certas moedas nacionais, é um factor de instabilidade cada vez mais desconexo do poder político. A globalização mata os mercados nacionais e corrói os próprios Estados nacionais. A globalização e a desregularização da economia favorecem a emergência de poderes novos, as multinacionais, que, com a ajuda das novas tecnologias, ultrapassam em permanência as estruturas estatais. Exemplo: o volume de negócios de uma empresa como a General Motors é mais elevado que o PNB que a Dinamarca, o da Ford do que o PNB da África do Sul, o da Toyota do que o PNB da Noruega. Ora, assiste-se a um divórcio crescente entre os interesses das empresas e das colectividades, entre a lógica do mercado e a lógica da democracia.

O quinto da população mundial mais rico dispõe de 80 por cento dos recursos mundiais, enquanto que o quinto mais pobre dessa mesma população apenas 0,5 desses recursos. A concentração da riqueza nas mãos de poucos e a pauperização de largas manchas da população são, pois, fenómenos correlativos. Tudo se concentra hoje nos mercados financeiros e nas redes de comunicação. É aí que está o poder real. Não no mundo político, nos governos, nos parlamentos, nos chefes de Estado ou nos partidos. Os gerentes de fundos de pensão americanos, japoneses e alguns mesmo europeus concentram nas suas mãos um poder incomparável e sem qualquer controlo democrático. Como disse Boutros-Ghali, o antigo secretário-geral da ONU, a realidade do poder mundial escapa hoje largamente aos Estados.



Pensamento único? Não, obrigado

O poder dos media de massas é outro poder emergente de primeira importância. Assim, poderemos afirmar que, perante a globalização em curso, o poder político é apenas o terceiro poder, sendo o primeiro o dos grandes grupos financeiros, em acelerada concentração, e o segundo o poder mediático. E, perante esta evolução, cava-se, cada vez mais, um fosso intolerável entre pobres, marginalizados, excluídos, sem acesso aos conhecimentos e à informação, e ricos - tanto pessoas como nações. Não é preciso ser profeta para prever, neste quadro - se não for atalhado por políticas reformistas, coerentes e sérias - gravíssimos conflitos sociais. Um dos objectivos da globalização é o desmantelamento do Estado social, o welfare state, em nome do mercado, da sacrossanta competitividade e do rolo compressor do chamado pensamento único. Manifesta uma absoluta insensibilidade pelas questões sociais, pelas conquistas sociais dos trabalhadores, conseguidas em século e meio de ásperas lutas.

Quinto: a revolução informática das telecomunicações, mais radicalmente transformadora da sociedade do que a invenção da imprensa. A Internet e as chamadas novas tecnologias, que não criam suficientes postos de trabalho, antes os suprimem. A crescente robotização, que está a modificar o conceito tradicional de trabalho, a forçar os despedimentos, a diminuir o peso social e a importância política da classe operária e a corroer o papel dos Estados nacionais como factores insubstituíveis de coesão nacional e de solidariedade.

É neste contexto de mudança que devemos apreciar a situação e o papel que ambicionamos para Portugal no quadro da UE em que nos inserimos. Quando tantos países europeus batem à porta, desesperadamente, da UE, Portugal tem a sorte de ser um dos 15 países-membros, a 12.ª estrela, a 11.ª estrela, só há 12, e dos mais bem colocados para ter acesso, logo na primeira fase, à moeda única. Não vejo que a nossa integração europeia ponha em causa, de algum modo, a nossa independência. Muito pelo contrário, reforça a nossa capacidade de decisão no plano internacional, de defesa quanto a injunções vindas do exterior, por exemplo eventuais especulações contra a nossa moeda. E a projecção de Portugal no exterior junto dos nossos aliados tradicionais, dos países lusófonos, ibero-americanos e, mesmo, relativamente a terceiros, em África, no Médio Oriente, no Leste europeu e na Ásia aumentou consideravelmente. A nossa eleição como membros não permanentes do Conselho de Segurança, contra o voto dos americanos, note-se, é uma prova disso.

Relativamente à nossa identidade cultural e à projecção da nossa língua no mundo poderia afirmar a mesma coisa, citando, por exemplo, a recente experiência da Feira do Livro de Frankfurt. Se, como dizia Fernando Pessoa, a nossa pátria é a língua portuguesa, somos hoje uma pátria de várias pátrias, com alguma variedade de culturas vinculadas pela mesma língua, a língua portuguesa. Acaso defenderíamos melhor a nossa identidade portuguesa se deixássemos de estar na UE? Ninguém hoje seriamente o pode afirmar. Voltaríamos ao orgulhosamente sós, de Salazar, com uma diferença, é que a Espanha, em plena expansão, estaria activamente agora na UE. Quanto ao conceito de soberania e à perda eventual de alguns dos seus atributos tradicionais, como, por exemplo, a prática nacional de cunhar moeda própria, que tanto impressiona alguns saudosistas, e aos mecanismos de decisão da União Europeia, com recurso à regra da maioria e não da unanimidade, não vejo que a aceitação dessas regras ponha em causa a soberania portuguesa, no entendimento moderno que hoje lhe deve ser dado.

Em que consiste, finalmente, o essencial da soberania de um Estado? Na projecção e prestígio que possa adquirir na ordem externa e na defesa coerente dos seus interesses próprios. Ora, num mundo globalizado, os grandes espaços geoestratégicos, como a UE, são essenciais para nos podermos defender do capitalismo especulativo, de que vos falei acima, e ter voz, influência e peso no concerto das nações.

É certo que a UE não é ainda aquele espaço de solidariedade por que sonhamos, e se encontra neste momento num impasse grave. Mobilizada para chegar à moeda única e à afirmação da União Económica e Social, está a ser ruída por 20 milhões de desempregados, sabemos isso, por 50 milhões de europeus que vivem abaixo do limiar mínimo da dignidade, pela exclusão social, por afloramentos de racismos, xenofobia. São problemas cuja gravidade não se deve esconder e que urge combater. Mas em ordem dispersa - cada país europeu ensimesmado em si próprio -, a situação torna-se ainda muito pior. Aqueles que são a favor da Europa Social e Política devem organizar-se e pressionar nesse sentido. Não há outro processo eficaz. Em ordem dispersa, nenhum país europeu poderá atingir este objectivo. É por isso que Cohn-Bendit disse, no L'Express, e muito bem, que ser de esquerda hoje significa ser-se a favor do fortalecimento da UE. Só isso poderá permitir combater por um mundo melhor.


Em defesa da Europa Social

A UE será o único interlocutor que pode ser admitido e respeitado pelos EUA. A UE será capaz de pressionar os EUA para pôr um mínimo de ordem neste mundo desregulado em que vivemos - no plano ecológico, na luta pela erradicação da pobreza, no diálogo Norte-Sul, no controlo demográfico, na luta contra a doença e as epidemias, como a sida, contra o pensamento único, neoliberal, e pelo multiculturalismo. O mundo em geral espera muito da UE - da América Latina à África, do Médio Oriente à Ásia, para não falar dos países do Leste, que são todos países candidatos, não o esqueçamos, à UE. A UE não pode nem deve decepcionar o mundo.

Para um país europeu haverá outra alternativa do que estar na UE? Qual será? Ficar isolado num mundo global? Com que defesas? Medite-se nos exemplos da China e da Rússia, grandes países, países continentes, que, mesmo assim, não querem viver isolados.

À parte desta evolução há apenas dois casos: Cuba e a Coreia do Sul, que estão isolados e em condições de miséria atroz. É para aí que nós poderemos ir? Poderia Portugal copiar um tal modelo? Não acredito que o povo português o queira.

Mas, como é óbvio, a UE não é uma panaceia, tem imensos problemas, contradições internas. Jean Monet ensinou-nos a "política dos pequenos passos", mas no mundo de hoje a grande força são as opiniões públicas e o começo do que se pode chamar uma opinião pública europeia e, mesmo, mundial, que diga não às desigualdades, às exclusões sociais, aos escândalos do desemprego, ao racismo, à xenofobia, que exigem

a defesa do nosso planeta, ameaçado e a luta pela justiça social e pela paz. E é essa opinião pública e, sobretudo, os jovens que precisamos de saber mobilizar e dinamizar. É essa a tarefa do movimento europeu, a que tenho, aliás, a honra de presidir.

Nos dois últimos anos houve modificações sensíveis no quadro político da UE, com a chegada ao poder de governos socialistas, tais como o governo de Koch, na Holanda; de Prodi, na Itália; de Guterres, em Portugal; de Blair, na Inglaterra; de Jospin, na França. Em 15 países, 11 são socialistas ou integrados por socialistas. É uma responsabilidade histórica para o socialismo democrático. Todos procuram conciliar a eficiência económica com as exigências da solidariedade e são todos contrários ao pensamento único neoliberal. É um caminho eriçado de dificuldades, com uma porta estreita, mas que a experiência demonstra ser possível. Medite-se nas recentes experiências da Itália ou de França. Estes Governos foram levados ao Poder pela aspiração dos povos, a uma mudança de política, ao reforço dos Estados, a assegurar que seja a política a controlar a economia, e não a economia a controlar a política. Ou serão capazes de satisfazer a vontade expressa dos eleitorados ou serão inevitavelmente substituídos por outros, porventura mesmo populistas, quem sabe se não governos demagogos de direita. É um grande risco. Daí que seja necessário, e é uma exigência geral de todos os que se reclamam da esquerda, ajudá-los, com sentido crítico e com vigilância. Foi o que fez a Refundação Comunista em Itália, não os comunistas reciclados em social-democratas, pressionada pelos sindicatos e pelo que resta das classes trabalhadoras organizadas.

Uma palavra final: não há pensamento de esquerda sem liberdade e sem respeito pela opinião dos outros. As liberdades nunca são formais, são sempre substanciais. Foi a grande lição que o mundo aprendeu com a queda dos totalitarismos de direita ou de esquerda, que tantos sofrimentos causaram a este nosso atormentado século. Por isso, sou, com toda a energia do passado, um militante contra o pensamento único neoliberal e a favor, como sempre fui, do socialismo democrático, que está bem representado na União Europeia.

«A globalização mata os mercados nacionais e corrói os próprios Estados nacionais. A globalização e a desregularização da economia favorecem a emergência de poderes novos, as multinacionais, que, com a ajuda das novas tecnologias, ultrapassam em permanência as estruturas estatais.»

«Um dos objectivos da globalização é o desmantelamento do Estado social, o welfare state, em nome do mercado, da sacrossanta competitividade e do rolo compressor do chamado pensamento único.»

«A Internet e as chamadas novas tecnologias, que não criam suficientes postos de trabalho, antes os suprimem.»

«Não vejo que a nossa integração europeia ponha em causa, de algum modo, a nossa independência. Muito pelo contrário, reforça a nossa capacidade de decisão no plano internacional.»

«Para um país europeu haverá outra alternativa do que estar na UE? Qual será? Ficar isolado num mundo global? Com que defesa? Medite-se nos exemplos da China e da Rússia, grandes países, países continentes, que, mesmo assim, não querem viver isolados.»

«Sou, com toda a energia do passado, um militante contra o pensamento único neoliberal e a favor, como sempre fui, do socialismo democrático, que está bem representado na União Europeia.»




Actualização

RECENSEAMENTO ELEITORAL EM FOCO

À Assembleia da República chegará uma proposta que visa desencadear um processo de actualização do recenseamento, por forma a garantir a sua total fidedignidade.

O Conselho de Ministros aprovou, no dia 6, uma proposta de lei relativa ao processo extraordinário de actualização do recenseamento eleitoral efectuado até 31 de Maio de 1997, através da criação de uma base de dados informatizada.

Das propostas que se encontravam contidas no relatório apresentado pelo ministro da Administração Interna, Alberto Costa, à Comissão Parlamentar especializada, a de criação desta base de dados, foi a solução mais consensual.

As operações de constituição, organização, manutenção e gestão da base de dados são da responsabilidade do Secretariado Técnico para os Assuntos do Processo Eleitoral, com acompanhamento da Assembleia da República e fiscalização da Comissão Nacional de Protecção de Dados Pessoais Informatizados.

Os dados são recolhidos junto das comissões recenseadoras das freguesias, sendo depois comparados com os constantes nas bases de dados de identificação civil do Ministério da Justiça.

Nos casos em que sejam detectadas inscrições múltiplas, será considerada válida a mais recente, ou, em caso de dúvida, a que corresponda ao local de residência indicado no ficheiro de identificação civil; caso nem assim seja possível apurar a residência, o STAPE contactará o eleitor através de carta registada para as moradas disponíveis.

Se não for possível contactar o eleitor, o STAPE escolherá a identificação que deve subsistir, dando preferência à que corresponder ao local onde o eleitor votou da última vez, informando disso o cidadão, através de notificação endereçada para todas as moradas conhecidas deste.

As inscrições indevidas, quer por motivo de falecimento quer por outros, serão eliminadas. No caso de haver dúvidas sobre estas situações, as inscrições destes cidadãos serão mantidas.

Os cadernos eleitorais resultantes deste processo serão enviados às comissões recenseadoras, que os exporão publicamente durante dez dias úteis para consulta e eventual reclamação dos interessados. Serão também expostos os nomes dos eleitores eliminados das listas.

As alterações efectuadas pelas comissões recenseadoras deverão, seguidamente, ser enviadas ao STAPE para correcção do ficheiro central.

Estão previstas penalizações de natureza criminal para o incumprimento da lei pelas comissões recenseadoras.

Sublinhe-se ainda que a reforma e modernização do recenseamento eleitoral, nomeadamente através do uso generalizado de meios informáticos, com vista à obtenção de maior fidedignidade e correspondência com o universo eleitoral real, era uma das medidas que constava no Programa do Governo.