PARLAMENTO




MODERNIZAÇÃO DA LEI FUNDAMENTAL

O «Acção Socialista» reproduz na íntegra a intervenção de JORGE LACÃO, presidente da Comissão Eventual de Revisão Constitucional, ontem na Assembleia da República sobre a revisão da lei fundamental:
 

 

Senhor Presidente, Senhores Deputados,
 

Um acto de Revisão constitucional, nos termos da Constituição, evidencia em si mesmo a estabilidade da ordem democrática;
a possibilidade de evolução constitucional, num contexto de tranquilidade das instituições, e de escrupuloso respeito pela
separação de poderes, exprime a maturidade do regime democrático - factos que por todos nós devem ser postos em relevo.

 
E é certamente este um momento adequado para igualmente relevar o legado de todos aqueles - com destaque para os
Capitães de Abril e os Constituintes de 76 - que, pela afirmação da liberdade, e pelo primado da justiça e do direito, nos
outorgaram o bem mais precioso tornado património comum da nossa geração: o bem da democracia.

 
Não o esqueçamos: Portugal é uma velha nação de oito séculos. Mas é uma jovem democracia de há apenas duas décadas,
baseada na soberania popular e no voto universal dos cidadãos.
 

Invocando recentes palavras do Sr. Presidente da República, aqui proferidas em 2 de Abril - precisamente em acto solene
comemorativo da Constituição - "vale a pena chamar a atenção para a necessidade de uma pedagogia democrática (em
torno das instituições) que está por fazer e é obrigação de todos nós". Pedagogia, digo, que deverá impor-se ainda com
mais oportunidade em vista da importância de generalizar o conhecimento e a compreensão das novas possibilidades abertas
com a Constituição revista.
 

Creio, no entanto, não haver melhor pedagogia que o testemunho da coerência e do rigor.

 
Cabe, pois, perguntar: teremos sido suficientemente coerentes e rigorosos na justificação, no procedimento e na explicitação
dos resultados da presente revisão constitucional?

 
Quanto à justificação.
 

Todos sabemos que a revisão não era inevitável e que do seu desfecho não dependia a normalidade da vida democrática.
Como pertinentemente, na ocasião já referida, lembrava o Sr. Presidente da Assembleia não tínhamos sido chamados a
enfrentar ameaças de "bloqueios constitucionais".

 
Deverá daí concluir-se - como alguns pretendem - ter sido esta revisão desnecessária ou supérflua?
 

Recorde-se. A actualização do texto constitucional fora já inviabilizada na legislatura passada, implicando o arrastamento de
certos factores de imobilismo que condicionaram, até hoje, reformas relevantes, particularmente para a modernização do
sistema político.

 
Visando contrariar inércias e resistências o PS assumiu, em devido tempo, compromissos inequívocos: no "Contrato de
legislatura para uma Nova Maioria" e no "Programa eleitoral de Governo", a revisão constitucional foi encarada como
a reforma das reformas necessárias à recuperação da confiança e ao alargamento da participação dos cidadãos nas
instituições, na vida política e na actividade cívica em geral.
 

Há-de mesmo reconhecer-se que na presente legislatura todos os partidos parlamentares e, individualmente, vários Deputados
encararam a revisão como significativa oportunidade para introduzir - num conjunto de onze projectos - múltiplas alterações à
lei fundamental. Idêntico sinal de interesse foi manifestado por parte de entidades independentes e cidadãos especialmente
qualificados no campo constitucional, que muito contribuíram para o resultado alcançado.
 

O significado de todo este procedimento não pode ser escamoteado.
 

A justificação da revisão de 97 reside, precisamente, no empenhamento de muitos, ainda que por formas diversas, em
encontrar respostas adequadas para um feixe de problemas suficientemente identificados na sociedade portuguesa: latente crise
de confiança no funcionamento do sistema representativo em aparente e mal resolvida competição com a chamada democracia
de opinião; défice de empenhamento e participação política dos cidadãos, especialmente dos jovens; em contrapartida,
excessos de partidarização da vida pública; carência de respostas ou de tutela efectiva dos sistemas institucionais na realização
ou protecção dos direitos fundamentais; excessivo peso do centralismo e evidentes desequilíbrios territoriais do
desenvolvimento; carências de eficiência, de qualidade e de qualificação a tantos níveis, institucionais e sociais; necessidades de
modernização geral com envolvimento mais empenhado dos agentes sociais e maior responsabilização dos decisores.

 
Em face de tais desafios, a razão de ser desta revisão foi, a um tempo, justificada pelo PS com a plena consciência da
importância política de os superar e com aviso do significado autêntico da revisão no contexto do regime. Como desta tribuna
oportunamente lembrou o Deputado António Reis, a revisão constitucional deveria sempre preservar - como preservou - o
valor democrático da estabilidade constitucional, "inequívoco sinal de maturidade e normalidade na vida política de um
país e mesmo de respeito e admiração pelo seu património histórico de valores e princípios".
 

Com efeito, esta revisão também se justifica pelos aspectos que liminarmente rejeitou: presunções de reconfiguração da
natureza e equilíbrio do sistema político; modificações da matriz do Estado social empenhado na promoção da igualdade entre
todos os portugueses; comprometimento da vocação europeísta de Portugal.
 

A revisão de 97, sem quaisquer constrangimentos externos, apresenta-se, pois, como um acto voluntário, consequência
positiva da vontade política deliberada dos seus promotores, em particular da maioria que logrou encontrar os consensos
operativos que a tornaram viável.
 

Essa vontade pode assumir-se, hoje, de forma realista, como o triunfo do inconformismo sobre as tendências ou mais radicais,
e por isso incapazes de gerar consensos, ou mais imobilistas, e por isso desinteressadas de quaisquer efeitos dinamizadores,
umas e outras presentes no quotodiano político mas, felizmente, não suficientemente capazes de inviabilizar as apostas
gradualistas e temperadas de mudança que vão ter lugar.

 
E o que dizer, também, dos procedimentos adoptados no decurso da revisão?

 
Entre Maio e Novembro de 96 a Assembleia apreciou, sem discriminações, todas as iniciativas apresentadas. Em Março de
97 os dois partidos indispensáveis à maioria de revisão lograram estabelecer um acordo entre si, marcando o destino positivo
da revisão. Posteriormente, em sede de Comissão competente e no Plenário, todos as propostas foram adequadamente
reavaliadas e votadas, permitindo alargar os consensos intercalarmente obtidos, numa extensão global que porventura
ultrapassou as melhores expectativas de partida. Que o processo conheceu vicissitudes várias é uma evidência. Mas seria
distorcer demasiado os acontecimentos pretender que esta revisão possa ter, nalgum aspecto, padecido de menos
possibilidades de debate e participação que quaisquer das anteriores. A legitimidade de todas elas, incluindo a actual,
encontra-se plenamente assegurada.

 
Justificada a legitimidade da revisão, importa que reflictamos sobre as suas virtualidades.
 

Com boa dose de prudência, convém encarar o resultado da revisão não apenas como um ponto de chegada mas, em
domínios relevantes, igualmente como um contributo de partida.

 
A conformação futura da ordem jurídica às novas possibilidades constitucionais será mais dinâmica ou mais demorada
consoante a intensidade do empenhamento político e o aprofundamento das oportunidades de consenso.
 

Aí está, para breve, já a justificar a dinâmica da revisão, o primeiro teste em torno da apreciação do projecto de reforma da lei
eleitoral para a A.R., recentemente anunciado pelo Secretário Geral do PS.

 
Sabemos, no entanto, todos, de experiência feita e erros partilhados, como os actos de entendimento entre formações políticas
costumam ser, por quantos deles não participam, tão anatemizados quanto a relação entre o diabo e a cruz.
 

É este, provavelmente, um dos problemas mais sérios da nossa vida política: o uso e o abuso da criação de factos políticos
artificiais e da proliferação de "bodes expiatórios" para colmatar insuficiências próprias, tudo, numa submissão lamentável aos
ditâmes do Estado-espectáculo, que tende frequentemente para comprometer, de forma dificilmente reversível, as condições
do confronto genuíno das ideias e a possibilidade dos compromissos políticos fecundos.
 

Preparemo-nos, pois, para a eventualidade do futuro reservar recorrentes dificuldades e resistências às melhores intenções
reformadoras.

 
Não há, em face dos "sobressaltos da descrença", como lhe chamou Ortega Y Gasset, outra solução que não seja retemperar
a confiança, praticar de forma activa a pedagogia de que falou o Sr. Presidente da República, exercer, com legitimidade e
coerência, a autoridade democrática e fazer opções.
 

Em face das opções tomadas na revisão e quanto ao seu mérito são legitimas todas as discordâncias. Mas o respeito por
opiniões divergentes não deve diminuir o sinal de convicção de quem está ciente dos resultados obtidos.
 

Algumas atitudes de cepticismo - já agora aqui ouvidas - são aliás singulares e merecem reflexão.
 

Ao contrário de S. Tomé, que precisou de ver para acreditar, é manifesto - e basta atentar nos extremos desta Câmara - que
há quem veja e compreenda mas prefira persistir, contra toda a evidência, na recusa do entendimento.
 

Exprimem, neste tempo, os sinais da pouca fé política, uns, por excesso de apego ao passado, outros, por excesso de
desadaptação ao presente.
 

Face ao primeiro caso, bastará lembrar os fracassos ainda tão próximos e a necessidade de superação histórica da lógica das
"Constituições - balanço", prisioneiras que foram do dogma da irreversibilidade dos seus modelos-padrão de harmonia e
felicidade.
 

Face ao segundo caso, importará que se reitere, com satisfação, que a Constituição da República Portuguesa, de novo revista
e actualizada como pacto constitutivo de uma comunidade soberana e democrática, vai permanecer idêntica e reforçada na sua
natureza essencial: lei fundamental baseada no reconhecimento do supremo valor da dignidade da pessoa humana, garante dos
princípios da liberdade, do pluralismo da igualdade e da solidariedade, comprometida na realização da qualidade de vida e do
bem-estar do povo português, com incorporação dos padrões de civilização e de cultura próprios das sociedades mais abertas
e mais conscientes dos seus direitos e deveres fundamentais.
 

A Constituição revista será, certamente, menos apta a deixar-se utilizar como bandeira tribunícia, mas creio que se revelará
mais eficaz em virtualidades reguladoras a beneficio geral da ordem jurídica, do melhor aperfeiçoamento do Estado de Direito
e duma mais exigente expressão da coesão nacional.
 

A esta luz sempre recusei, sem temer comparações, partilhar a tentação de avaliar a revisão segundo a lógica redutora dos
ganhos e perdas partidários. Os que em contrário procedem não prestam certamente grande tributo ao sentido da
responsabilidade de Estado nem, provavelmente, ao dever intelectual da objectividade. Não favorecem, em suma, o esforço
pedagógico de promover a Constituição da República - aí, onde ela acima de tudo deve ser colocada - na razão e no coração
de todos os portugueses, seja quais forem os seus credos políticos.
 

No entanto, como diria La Palisse, as coisas são como são. E, em política, são até, vezes demais, tributárias daquela ideia do
Bispo de Berkeley para quem a realidade não existe, senão a opinião que cada qual dela formula.
 

Na tentativa de contrariar a prevalência dos impressionismos sobre a objectividade, num domínio em que sobremaneira tal se
justifica, julgo adequado registar, em breve e imperfeita síntese, o programa normativo da revisão constitucional. E esse será o
melhor testemunho da seriedade do trabalho realizado:
 

     aperfeiçoamento do regime de direitos, liberdades e garantias visando a sua melhor efectividade e harmonização,
     designadamente com bens jurídicos tão relevantes como os da dignidade da pessoa, do combate ao crime, da justiça
     em tempo útil, da protecção legal contra todas as formas de discriminação;
 

     valorização do estatuto constitucional de igualdade entre homens e mulheres;

 
     repúdio, em sede constitucional, do racismo;

 
     ampliação dos direitos fundamentais dos trabalhadores, em face das prementes exigências de modernização empresarial,
     qualificação profissional e dignificação das condições de trabalho;
 

     aprofundamento do alcance de alguns direitos de natureza económica, social e cultural, a benefício do Estado social, da
     solidariedade, do bem-estar e da qualidade de vida das pessoas;
 

     actualização dos princípios orientadores da organização económica e social, na mesma base de subordinação do poder
     económico ao poder político e numa melhor compreensão do papel da iniciativa, da contractualização social, da função
     do Estado empenhado em combater todos os abusos de posição dominante e em promover o desenvolvimento
     sustentável e equilibrado do País, sem excesso de burocratismo nem carência de instrumentos de intervenção;

 
     aposta decidida na modernização do sistema político, num propósito claro de devolução de poder e iniciativa aos
     cidadãos, no quadro de um equilíbrio garantido entre o primado da democracia representativa e o aprofundamento da
     democracia participativa, de que importa destacar:

     abertura à reforma das leis eleitorais, nelas se incluindo o alargamento, ponderado em critério de ligação efectiva à
     comunidade nacional, a regular por maioria especialmente qualificada, do direito de voto a cidadãos portugueses
     residentes no estrangeiro para a eleição do Presidente da República; a possibilidade de criação de círculos uninominais
     nas eleições legislativas, como forma de alcançar uma maior personalização e responsabilização políticas dos eleitos em
     face dos eleitores, sempre no quadro necessário do sistema de representação proporcional; a modificabilidade do
     sistema de governo das autarquias locais em vista de uma maior democraticidade e eficiência do poder local;
 

     alargamento do âmbito material do referendo nacional e consagração da figura dos referendos regionais e locais;
 

     correcta inserção de um regime de consulta popular na fase da instituição em concreto da regionalização;
 

     consagração dos direitos de iniciativa popular legislativa e do referendo, de passo com o aprofundamento do conteúdo
     do direito de acção popular e a consagração constitucional da possibilidade de candidaturas independentes aos órgãos
     das autarquias locais;

 
     no respeito pela unidade do Estado, adopção do princípio da subsidiariedade e aprofundamento do princípio da
     descentralização, com beneficio particular para as autonomias regionais, no reconhecimento da sua especifica situação
     ultraperiférica, também para o poder local mas, essencialmente, promovendo, contra as velhas concepções de império,
     uma nova ideia de Estado ao serviço das pessoas;

 
     reforço significativo dos poderes legislativo e de fiscalização da Assembleia da República, com reforço do seu papel
     face à participação nacional nos processos de decisão da União Europeia;
 

     adopção de regras de responsabilização, democraticidade e publicidade na vida dos partidos;
 

     inovações relevantes nas áreas da justiça, da defesa nacional, das polícias e da Administração assegurando-se, sempre,
     um adequado equilíbrio entre realização das necessidades públicas e valorização da cidadania.

 

Enfim,
 

Senhor Presidente e Senhores Deputados,

 
Sem a pretensão de fazer caber a trama complexa das alterações constitucionais nos limites de uma intervenção parlamentar,
confessei o propósito relevante do enunciado: poder, através dele, testemunhar o valor e a utilidade da revisão constitucional
de 97. Poder exprimir, em torno dela, o melhor empenhamento do Grupo Parlamentar do PS, certamente de todos os
Deputados que vão aprovar a lei de revisão, porventura mesmo de outros que o não façam, mas todos identificados na razão
mais nobre do mandato popular: contribuir para a perenidade do regime democrático, da ordem constitucional, do
desenvolvimento solidário, em liberdade e em paz, do Povo Português.
 

Viva a Constituição da República.
 

Lisboa, 3 de Setembro de 1997